A terceira Conferência Cigana Europeia (European Roma Conference), que teve lugar em Sarajevo, na Bósnia, em outubro de 2019, reuniu 226 participantes de 31 países. O encontro teve uma diversidade de pessoas: ciganos e não-ciganos, pessoas do mundo académico ou com pouca educação formal, pastores, missionários, músicos, líderes e paroquianos.
O tema foi «Parcerias saudáveis». O conteúdo prático, intercalado com estudos de caso reais da Bósnia, Sérvia, Roménia, Finlândia e Índia, ilustrou o valor de multiplicação que existe em parcerias saudáveis e o perigo de parcerias desiguais com expectativas divergentes. Os grupos, organizados por países e regiões, discutiram as suas experiências, tanto boas como más.
Porquê este tema, neste momento e lugar? Existem desafios no desenvolvimento de parcerias de missão mutuamente saudáveis — um facto comprovado tanto pela história de missões como pelas minhas próprias observações no sudeste da Europa. Apesar disso, a parceria com igrejas e comunidades ciganas é vital para partilhar os nossos vários dons na manifestação da ‘nova humanidade’ em Cristo.[1]
Quem são os ciganos?
A maioria dos académicos ligam o povo que hoje identificamos como ciganos a grupos de pessoas que migraram do noroeste da Índia há mais de um milénio, em referência ao povo romani e à língua romaní. O termo «Roma» é hoje frequentemente utilizado para abranger uma ampla faixa de pessoas que se identificam como rom, ciganos, sinti, calon, etc.[2] A questão da identificação é complexa, uma vez que, por vezes, a autoperceção de um grupo não se alinha com a terminologia de estranhos; geralmente, espero até saber como uma comunidade se autoidentifica antes de utilizar qualquer termo.
Demasiadas vezes, os ciganos são retratados em imagens unidimensionais e estáticas — frequentemente associadas à pobreza ou criminalidade, por exemplo — quer sejam do Brasil, de França ou da Roménia. É fundamental compreender que os ciganos não são homogéneos mas diferentes grupos minoritários espalhados por vários países e continentes. Podem falar diferentes línguas ou dialetos romani e ter várias práticas culturais e religiosas. Têm também histórias diferentes com as sociedades em que se inserem. Na Europa, por exemplo, séculos anteriores de políticas severas destinadas a assimilar, banir ou até exterminar ciganos (na II Guerra Mundial) promovem ainda hoje imagens negativas deste grupo.
No entanto, apesar dessas diferenças, alguns cristãos ciganos têm um sentido de identidade transnacional e visão missionária, desde a Europa, passando pela América do Norte e do Sul e estendendo-se até à Índia.[3] Por exemplo, alguns académicos e ativistas associam a comunidade cigana aos banjara, uma grande tribo de clãs que se encontra no noroeste, centro e sul da Índia.[4] Srinivas Naik é um pastor banjara e fundador da Global Banjara Baptist Ministries (Ministérios Batistas Banjara Globais, GBBM), que opera em quatro Estados indianos através da plantação de igrejas, formação de liderança e trabalho social. Em Sarajevo, ele expressou um forte desejo de se relacionar e adorar com pessoas do seu próprio grupo étnico e referiu um sentido de «pertença»: não só ele e outros ciganos pertencem a Cristo, como também pertencem uns aos outros em termos de etnia e história.
Realidades paralelas
O cristianismo continua a crescer globalmente entre ciganos, sobretudo na forma pentecostal — desde grandes avivamentos em França, a partir da década de 1950, ao rápido desenvolvimento na Europa Central e de Leste após a queda do comunismo.[5] Estudos académicos em vários contextos verificaram que o cristianismo contribui para um aumento dos níveis de educação e alfabetização e uma diminuição da criminalidade e da distância social da cultura dominante.[6]
Contudo, a Europa apresenta realidades paralelas dentro dos seus 10-12 milhões de ciganos:
- Embora haja ciganos integrados em todas as esferas da sociedade, muitos enfrentam uma dura situação socioeconómica, sobretudo na Europa de Leste.
- Os grupos de ciganos na Europa têm muitas vezes maiores taxas de desemprego, analfabetismo e problemas de saúde, bem como habitação de qualidade interior e menor escolaridade.
- Lidam com exclusão social, discriminação e racismo. O preconceito não é sempre unilateral: alguns grupos de ciganos manifestam desprezo por não-ciganos (gadjôs) e até por outros ciganos.
- A vulnerabilidade de ciganos em certos contextos faz deles um dos alvos principais no tráfico de seres humanos.
Porém, as questões de discriminação e marginalização social não se limitam à Europa. Embora os ciganos (compostos por calon e rom) sejam foco político crescente nos últimos 20 anos,[7] continuam a ser alvo de preconceito. Na Índia, os banjara são muitas vezes socialmente isolados, sem educação e economicamente desfavorecidos. Embora os banjara no Estado de Naik sejam categorizados como grupo tribal, o que lhes dá mais respeito social, são frequentemente considerados dalits (intocáveis) noutros Estados.
A necessidade de parcerias saudáveis
Perante isto, acredito que existem três grandes razões para desenvolver parcerias saudáveis entre ciganos e não-ciganos:
1. Momento kairos?
Este pode muito bem ser um ‘momento kairos’ em termos de oportunidade global para evangelizar e discipular grupos ciganos. Na Europa de Leste, muitos pastores ciganos declararam que agora é o tempo dos ciganos, em referência à sua abertura espiritual. Na Índia, Naik reporta um enorme crescimento nos últimos 20 anos, quando os banjara começaram a evangelizar banjara. De forma independente, também ele disse que agora é o momento dos banjara, estando Deus a derramar o seu Espírito entre eles, e pediu mais parceiros de todo o mundo para se lhes juntarem e aproveitarem esta oportunidade.
2. Desafios intimidantes
Este momento kairos vem muitas vezes em contextos intimidantes no que toca à enormidade de desafios e oportunidades tendo em conta a falta de pessoas e de recursos. O discipulado é um processo intenso limitado pela falta de pessoas a servir. Por exemplo, Naik descreve formação limitada para evangelistas e pastores, o que produz «fruto fraco». As questões das comunidades pobres também podem ser esmagadoras: a necessidade de emprego e criação de emprego, educação, apoio social e político, formação em discipulado, cura de traumas e educação teológica.
Existem muitos exemplos de como as parcerias aumentaram tanto a qualidade como a quantidade dos esforços de missão:
- Igor Shimura, ativista social e pastor calon, relatou que, através de parcerias tanto nacionais como globais, a Bíblia está a ser traduzida para calon, foram plantadas dez igrejas e mobilizados congressos missionários.
- A GBBM beneficiou de parcerias externas que, por exemplo, lhes mostraram como o historiar de cinco histórias do Antigo Testamento podem preparar uma cultura politeísta para o evangelho.
3. A necessidade de igualdade
A parceria é urgentemente necessária para incentivar transformação; contudo, a história dos ciganos em muitos contextos exige uma ênfase na qualidade da parceria. Na Europa, por exemplo, a própria igreja marginalizou ciganos ao longo da história, excluindo-os do batismo e, por vezes, considerando-os incapazes de liderar as suas próprias igrejas. Parcerias igualitárias, portanto, podem ser um testemunho essencial para a reconciliação relacional possível em Cristo. Miki Kamberović, um pastor de ciganos na Sérvia, observou que os ciganos começam apenas agora tomar posse da sua identidade. São necessárias pessoas que não venham já com planos e ideias, mas que queiram trabalhar em conjunto para a transformação de comunidades ciganas.
A Roma Networks, que organizou a conferência em Sarajevo, tem como objetivo estabelecer redes e produzir investigação para transformar as comunidades ciganas. A ênfase em parcerias saudáveis em Sarajevo captou intencionalmente a necessidade crítica de partilhar a diversidade de dons, de capacitar ciganos e curar a relação entre ciganos e não-ciganos.
O presidente da Roma Networks, Nina Jankucić, afirmou que não precisam que pessoas, com as suas ações, façam os ciganos pensar que são incapazes de contribuir. Isso deixa uma marca que passa para a geração seguinte. Nas parcerias saudáveis, todos os membros contribuem com aquilo que têm. Isto faz parte do processo de cura, à medida que os ciganos começam a acreditar que têm algo a contribuir — e à medida que contribuem, o mundo também muda a sua percepção.
Implicações
Que imagem poderemos associar ao tipo de parcerias que procuramos? A de uma mesa-redonda: uma mesa-redonda assegura que todos se veem uns aos outros e têm acesso igual à conversa. Aqui estão algumas considerações para os ciganos e não-ciganos à medida que se sentam a esta mesa:
1 Em função das muitas falsas perceções e preconceitos acerca dos ciganos, é crucial conhecer a cultura e a história ciganas num determinado contexto. A igreja tem a responsabilidade de ir além dos retratos unidimensionais.
2 Ouvir, aprender e construir relacionamentos sem ter planos predefinidos fomenta a confiança. Quanto mais tempo se dedica ao relacionamento, menos frágil é a confiança. Isto promove a honestidade e o feedback mútuos que serão necessários na comunicação intercultural que irá sem dúvida ocorrer. Parcerias criadas num paradigma transacional, enquadradas em termos de posse e falta de recursos, passam ao lado da identidade e da função do corpo de Cristo.
3 Os cristãos ciganos precisam se ver como estando tanto a contribuir como a aprender com a igreja global. Uma troca mútua de compreensão teológica e missional acende o fervor evangelístico, enriquece a igreja no seu contexto, acaba com o territorialismo de ministérios e questiona barreiras étnicas. Por exemplo, vários ministérios banjara na Índia fazem parte de um Conselho Indiano de Cristãos Banjara (BCCI), que organiza eventos conjuntos demonstrando união.
4 A igualdade de parcerias entre igrejas na Europa Ocidental e de Leste (e noutros lugares) tem um papel crítico na abordagem de questões sociais complexas. Por exemplo, a migração Leste-Oeste na Europa aumentou rapidamente depois da queda do comunismo e subsequente expansão da UE. Para os migrantes ciganos, como outros, isso teve resultados positivos e negativos:
- Embora muitos migrantes ciganos se integrem bem através do emprego e redes familiares, a vulnerabilidade de outros leva à exploração ou à dificuldade em navegar novos sistemas sociais.
- Os que mais aparecem na comunicação social são os mais pobres ou envolvidos no crime, propagando estereótipos e receios na sociedade.
- As igrejas no Ocidente podem não ter a certeza de como ajudar pessoas que dependem de mendigar ou que são mão-de-obra menos qualificada.
No entanto, as oportunidades de missão fluem em várias direções. Pastores ciganos enviam anciãos para dirigir novas igrejas no Ocidente e ciganos e não-ciganos começam projetos missionários no Leste. É uma questão complicada que requer mais aprendizagem mútua, tanto para aproveitar as oportunidades de missão como para lidar com os desafios emergentes.
Em última análise, de acordo com Charles Van Engen, «Consideramos que o conhecimento cristão acerca de Deus é cumulativo, aperfeiçoado, aprofundado, alargado e expandido à medida que o evangelho toma forma em cada nova cultura».[8] Parcerias humildes na mesa-redonda de Cristo conduzem a essa maior compreensão de Deus e, em seguida, a uma participação mais rica na sua missão. Recentemente, sentei-me na minha pequena igreja multi-étnica na Croácia e fiquei maravilhada — um pastor cigano pregava enquanto croatas, sérvios, americanos e ciganos o ouviam atentos. Nesta parte do mundo, esse é um notável testemunho do que é possível sob o senhorio de Jesus e a graça do Espírito.
Notas
Andrew Walls, The Cross-Cultural Process in Christian History (Maryknoll, NY: Orbis, 2002). ↑
Dois exemplos ilustram esta complexidade: em alguns contextos, os grupos identificam-se como ciganos, enquanto noutros contextos o termo é ofensivo; sinti não se identificam como roma. ↑
See for example: Marcos Toyansk, ‘The Romani Diaspora: Evangelism, Networks and the Making of a Transnational Community’, Razprave in Gradivo: Revija za Narodnostna Vprasanja (2017) 79:185–205. ↑
Daniel Krása, Ňilaj, ‘The Banjara: A Nomadic Tribe of India and Possibly One of the Cousins of Europe’s Roma’, Romano džaniben (2007), 45-65; B. Shyamala Devi Rathore, ‘A Comparative Study of Some of the Aspects of the Socio-Economic Structure of Gypsy/Ghor Communities in Europe and in the Andhra Pradesh, India,’ European Journal of Intercultural Studies 6:3 (1996), 15-23; Donald Kenrick, Historical Dictionary of the Gypsies (Romanies) 2nd ed (Maryland: The Scarecrow Press, 2007). ↑
It is difficult to find reliable numbers of churches and Christians, just as in many contexts it is difficult to know accurate population numbers. However, a few estimates can offer some examples: an estimated 800 Roma churches in Bulgaria; Romania has numerous movements—one movement alone has 200 churches; an estimated 140,000 believers in France and 200,000 in Spain. Manuela Cantón-Delgado, ‘Gypsy Leadership, Cohesion and Social Memory in the Evangelical Church of Philadelphia’, Social Compass (2017), Gypsy and Traveller International Evangelical Fellowship 2014 Report, Rene Zanellato; Magdalena Slavkova, ‘Prestige and Identity Construction Amongst Pentecostal Gypsies in Bulgaria’ in D Thurfjell & A Marsh eds. Romani Pentecostalism: Gypsies and Charismatic Christianity (New York: Peter Lang International Academic Publishers, 2014): 57–74 ↑
See, for example: Tatiana Podolinská and Hrustič, Tomaš, ‘Religion as a Path to Change? The Possibilities of Social Inclusion of the Roma in Slovakia’ (2010); Miroslav Atanasov, ‘Gypsy Pentecostals: The Growth of the Pentecostal Movement Among the Roma in Bulgaria and its Revitalization of Their Communities’, Asbury Theological Seminary (2008). ↑
Florencia Ferrari and Martin Fotta, ‘Brazilian Gypsiology: A View from Anthropology’, Romani Studies 24.2 (2014),11-136; 113. ↑
Charles Van Engen, ‘Five perspectives of Missional Theology’, in Appropriate Christianity, ed. Charles Kraft (2005), 183-202; 197. ↑
Fonte: LAUSANNE